No dia 11 de novembro de 2024 “comemoramos" sete anos de vigência da Lei n° 13.467/2017, popularmente referenciada como a “Reforma Trabalhista”, que veio ao mundo jurídico brasileiro com um objetivo principal de reduzir o número de novas ações perante a Justiça do Trabalho. Este objetivo era um reclamo antigo da classe empresarial (capitaneada pela Confederação Nacional da Indústria – CNI, que indicou 101 propostas para a modernização das relações trabalhistas ainda em 2012), que argumentava que o alto fluxo de ações na Justiça do Trabalho gerava muita insegurança jurídica para os empregadores, afastando assim a possibilidade de investimentos na economia nacional.
Através da “Reforma Trabalhista” foram realizadas diversas alterações na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que visaram a retirada de direitos comumente pleiteados em ações trabalhistas como: o reconhecimento de equiparação salarial, o pagamento de horas extras; a incorporação ao salário de gratificações; o enfraquecimento dos Sindicatos com o fim do imposto sindical; e a possibilidade de condenação da parte autora ao pagamento de honorários sucumbenciais – inclusive no caso de deferimento dos benefícios de gratuidade da justiça.
Os efeitos dessas mudanças foram imediatos, conforme se verifica no levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), resultando em uma expressiva e contínua queda no número de processos novos ajuizados perante a Justiça do Trabalho: em 2017 (ano de aprovação da “Reforma”) foram ajuizados 4,3 milhões de novos processos; em 2018 este número caiu para 3,5 milhões; número que se repetiu no ano de 2019; em 2020 foram 3,1 milhões de novos processos; e em 2021 foram 2,9 milhões de novos processos.
A redução da litigiosidade perante a Justiça do Trabalho não significa que os empregadores desenvolveram maior senso de responsabilidade na aplicação das regras de direito material do trabalho, mas sim que os trabalhadores passaram a ter medo de ingressar com ações trabalhistas que discutissem matérias de difícil comprovação (o que poderia resultar, em caso de uma decisão de improcedência, na sua condenação ao pagamento de honorários sucumbenciais).
Passou a ser parte integrante do roteiro de perguntas e explicações prévias de qualquer advogado trabalhista que defende trabalhadores a indicação dos percentuais mínimo e máximo dos honorários sucumbenciais que poderiam vir a ser arbitrados na ação trabalhista, que seriam calculados sobre o valor indicado para cada um dos pedidos na petição inicial (outra alteração trazida pela “Reforma Trabalhista”). O exercício do direito de defesa das empresas não era afetado pelo ajuizamento de ações com valores genéricos (cenário que existia antes de 2017), mas o mesmo não pode ser dito sobre o exercício do direito de ação pelos trabalhadores pelo ajuizamento de ações com a indicação de valores prévios.
Em razão disso, ainda no ano de 2017, foi ajuizada a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 5.766 pela Procuradoria-Geral da República, em que se objetivava a declaração de inconstitucionalidade do disposto no art. 791-A, § 4°, da CLT (incluído pela “Reforma Trabalhista”) que trata justamente da possibilidade de condenação do trabalhador que é beneficiário da gratuidade da justiça ao pagamento de honorários sucumbenciais, inclusive mediante o desconto de valores sobre eventuais créditos recebidos em qualquer ação judicial (seja aquela em que os honorários foram arbitrados, ou outra que esteja em trâmite perante a Justiça do Trabalho).
Esta ação foi julgada em outubro de 2021 pelo Supremo Tribunal Federal, prevalecendo o voto do Ministro Alexandre de Moraes que entendeu ser desarrazoado concluir que o simples êxito no processo tornaria a pessoa hiperssuficiente a ponto de poder arcar com o pagamento de honorários sucumbenciais, retirando-lhe a condição de hipossuficiente que garantiu a concessão dos benefícios de gratuidade da justiça, assegurados pela Constituição.
Assim, no entendimento firmado pelo STF, o trabalhador poderia ser condenado ao pagamento de honorários sucumbenciais, mas em razão de sua hipossuficiência, a exigência do pagamento destes valores permaneceria em condição suspensiva pelo período de 02 (dois) anos, quando então a dívida seria extinta. Não foi exatamente um retorno ao status quo estabelecido antes da “Reforma”, mas era algo mais próximo daquilo que a Constituição, o Código de Processo Civil, e a própria CLT estabelecem.
O efeito imediato dessa decisão pode ser visto no número de ações ajuizadas na Justiça do Trabalho nos anos de 2022 e 2023: foram 3,3 milhões de novas ações no primeiro ano, e 4,2 milhões de novas ações no segundo ano após a decisão proferida pelo Supremo acerca dos benefícios de gratuidade da justiça. Ou seja: com a retomada da garantia de que o trabalhador hipossuficiente não seria condenado ao pagamento de honorários sucumbenciais, o número de processos retomou ao mesmo patamar que se verificava antes da “Reforma Trabalhista” – o que prova, de forma absoluta, que jamais houve uma mudança de atitude pelos empregadores acerca da aplicação das regras de direito nos contratos de trabalho –; o que havia de fato era o mais puro temor dos trabalhadores em ingressar com uma ação e acabar condenado ao pagamento de valores (ou seja, ao invés de se tornar credor, acabaria se tornando um devedor).
Infelizmente, e curiosamente, a história tomou um rumo diferente: o mesmo Supremo Tribunal Federal que adotou posição garantista em matéria de Direito do Trabalho, assegurando o direito dos trabalhadores hipossuficientes de acesso à Justiça, passou a tomar decisões que passaram a minar a competência material da Justiça do Trabalho.
Em 2018 foi julgada a ADPF nº 324, que reconheceu a licitude da terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não caracterizando vínculo de emprego entre o trabalhador da empresa prestadora de serviços e a empresa tomadora dos serviços; em 2019 este entendimento foi reforçado com o julgamento do Tema 725 (RE n° 958.252); em 2020 foi julgada a ADC 48, que reconheceu a constitucionalidade da Lei n° 11.442/2007, que trata do contrato de trabalho autônomo para o motorista rodoviário de cargas; e em 2022 foi julgada a ADI 5.625, que reconheceu a constitucionalidade da Lei n° 13.352/2016, que trata do contrato de trabalho autônomo no ramo da beleza (“salão-parceiro”).
Munido destes precedentes, o Supremo Tribunal Federal vem reiteradamente cassando decisões da Justiça do Trabalho em que se reconhecia a existência de vínculo empregatício de profissionais de diversas áreas e em diversas situações (desde terceirizados até profissionais liberais ‘pejotizados’), sob o fundamento de que vivemos em um mundo com nova organização do trabalho. As relações de trabalho não são mais reguladas apenas pela CLT, e são válidas todas as formas de contratação diversas do vínculo empregatício, não cabendo ao Poder Judiciário limitar a existência e a validade destas formas.
Nessas decisões, em que a Justiça do Trabalho reconhece o vínculo empregatício a partir das provas existentes nos autos, e com base no que estabelecem os artigos 2°, 3° e 9° da CLT, juntamente com o inciso I do art. 114 da Constituição Federal há expressa determinação de que os autos sejam remetidos para a Justiça Comum (uma vez que se declara a validade de um contrato de natureza cível, de prestação de serviços), causando agora novo temor na classe trabalhadora que, cada vez mais, é parte integrante de uma organização econômica que privilegia meios de contratação diversos do que o vínculo empregatício (como a terceirização, a prestação de serviço autônomo e a “pejotização”), isto porque ao invés de ter seus direitos legais assegurados, acabará se tornando réu em um cumprimento de sentença movido pelo seu ex-empregador, perante a Justiça Comum, e condenado ao pagamento de honorários sucumbenciais (em um ramo do Judiciário que, historicamente, é reconhecido como mais duro e reticente em deferir os benefícios de gratuidade da justiça).
No início de 2024 o Ministro Luis Roberto Barroso, presidente do STF e do CNJ, anunciou que seria criado um grupo de trabalho sobre a litigiosidade na Justiça do Trabalho. Segundo o Ministro, o alto número de ações trabalhistas representa um entrave para o desenvolvimento econômico do País, causando alto nível de insegurança jurídica aos empregadores, e consequentemente resultando na fuga de investimentos na economia nacional, o que pode causar surpresa ao leitor, uma vez que estes argumentos já eram utilizados pela CNI para defesa de suas 101 propostas para modernização trabalhista em 2012.
Segundo Marx todos os fatos se repetem por pelo menos duas vezes: “a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. Estamos vendo a história se repetir em um período de tempo muito curto. Apenas sete anos após o Legislativo aprovar uma lei que retirou direitos e negligenciou o acesso à Justiça para milhões de trabalhadores, agora é o Judiciário (através da Corte Constitucional) a proferir decisões que trilham o mesmo caminho – a mesma Corte que garantiu o acesso à Justiça do Trabalho, com a decisão proferida na ADI n° 5.766.
E os reflexos são imediatos. O CNJ aprovou a Resolução n° 586/2024 que trata da possibilidade de homologação de acordos extrajudiciais pela Justiça do Trabalho que visem a resolução de potenciais demandas trabalhistas (mediante a quitação integral dos haveres contratuais). Na sessão em que a Resolução foi aprovada, novamente o Ministro Barroso defendeu que a alta litigiosidade perante a Justiça do Trabalho resulta em prejuízos à economia.
Mas se analisarmos os números divulgados pelo próprio CNJ, vemos que a litigiosidade na Justiça do Trabalho (apesar de ter atingido os mesmos números que apresentava em 2017) não representa o maior fluxo de processos no Poder Judiciário: no ano de 2023 foram registrados 65 milhões de processos em trâmite no âmbito da Justiça Comum dos Estados (sendo 25,2 milhões de novos processos), e 12,6 milhões de processos em trâmite no âmbito da Justiça Federal (sendo 5,1 milhões de novos processos). Até a Justiça Militar apresenta números similares aos da Justiça do Trabalho: em 2023 foram 4,3 milhões de processos em trâmite, e 3,9 milhões de novos processos.
O problema, como defendido, não é o alto número de processos, mas sim a reiterada e inalterada resistência no cumprimento de regras de direito material, que acaba resultando no legítimo ajuizamento de ações, que visam exclusivamente a garantia de direitos dos trabalhadores. Conforme levantamento realizado pelo Tribunal Superior do Trabalho, no ano de 2023 os cinco temas mais reclamados em processos novos ajuizados foram diferenças de horas extras, o pagamento da multa rescisória sobre os depósitos fundiários (FGTS), diferenças sobre o aviso prévio, o pagamento da multa prevista pelo art. 477 da CLT (que trata do prazo para pagamento das verbas rescisórias), e diferenças sobre adicional de horas extras (em casos onde há o reconhecimento da realização de horas extraordinárias, mas não há o correto pagamento das mesmas).
Analisando o quadro geral relativo a todos os Tribunais Regionais do Trabalho do País, verifica-se facilmente que a grande maioria das ações busca o reconhecimento de verbas que seriam devidas no momento da rescisão contratual – cujos critérios são absolutamente objetivos – mas que, até hoje, não são devidamente observados pelos empregadores. Não é possível concluir que estas questões atrapalhem o desenvolvimento econômico do País, e possam causar insegurança jurídica no empresariado e no mercado financeiro.
É preciso reconhecer o importante papel prestado pela Justiça do Trabalho como mecanismo de garantia dos direitos mínimos estabelecidos pela CLT, mas também como mecanismo de arrecadação de valores devidos em legislações específicas (como a Previdência Social e a Receita Federal), e fomentador da economia: no ano de 2023 foram arrecadados mais de R$ 4 bilhões em valores devidos a título de contribuições previdenciárias, e mais de R$ 1 bilhão em valores devidos a título de imposto de renda. Além disso, foram pagos mais de R$ 41 bilhões de reais aos autores das ações (entre acordos, execuções finalizadas e pagamentos espontâneos).
Assim, neste “aniversário” da Lei n° 13.467/2017, é muito pouco provável que os operadores jurídicos que atuam na Justiça do Trabalho irão se lembrar que estamos completando mais uma volta ao redor do Sol sob a vigência da “Reforma Trabalhista”. A reforma, que na realidade foi uma deforma, e que ao fim e ao cabo representou apenas mais um sobressalto em uma longa história de avanços e retrocessos que marcam a realidade do mundo do trabalho brasileiro: o problema (segundo aqueles que criticam a Justiça do Trabalho) não é a sonegação de direitos, mas sim a existência destes direitos. Nos resta apenas seguir lutando.
Por Anderson Sameliki Dionisio, advogado do Trindade & Arzeno Advogados Associados