Dados do sistema eSocial do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) apontam que, em 2023, ocorreram 499.955 acidentes de trabalho, com 2.888 acidentes fatais. Para tentar entender porque o Brasil está entre os três países do mundo com o maior número de mortes por acidentes de trabalho, no Dia Nacional de Prevenção de Acidentes de Trabalho conversamos com dois especialistas no assunto: José Marçal e Vanessa Farias.
José Marçal Jackson Filho é Engenheiro de Minas, Pesquisador e Doutor em Ergonomia pela Conservatoire National des Arts et Métiers (Paris-França).
Vanessa Madeira Farias é Engenheira de Segurança do Trabalho, Assistente Técnica em perícias judiciais para entidades sindicais e trabalhadores, Engenheira Agrônoma - UEM, Auditora Técnica em Unidades Armazenadoras - CENTREINAR - Viçosa-MG, Engenheira de Segurança do Trabalho e Mestre em Saúde Coletiva pela UFPR.
Confira as entrevistas:
1. A cada 3h uma pessoa morre de acidente de trabalho no Brasil. O que fazer para mudar essa realidade?
José Marçal - Em primeiro lugar, seria preciso conceber os acidentes de trabalho como um problema de sociedade, algo inaceitável que não deveria ocorrer. Sabe-se que os acidentes não ocorrem por acaso, nem são frutos do descuido, dos atos inseguros dos trabalhadores; pelo contrário, são eventos previsíveis que poderiam ser evitados pelas empresas/instituições que organizam o trabalho, desenham e utilizam processos técnicos para a produção de bens ou serviços. Pode-se pensar, assim, em segundo lugar, sobre a necessidade de implementar políticas públicas de fato para o enfrentamento dos acidentes de trabalho; é duro reconhecer, embora não caiba aqui avaliar sua qualidade, mas houve política durante o governo militar (aliás, as normas regulamentadoras são resultado dessa política). Mesmo nos tempos recentes, era questionável o interesse dos governos petistas sobre o tema; para nós, a ausência de projeto de governo sobre o tema parecia ser o mais evidente (veja editorial que escrevi na Revista Brasileira de Saúde Ocupacional (Jackson et al., 2007)*. Nesse sentido, o fortalecimento da auditoria fiscal do trabalho, dos centros de referência em Saúde do Trabalhador, com recursos necessários para agir, permitiria maior presença do Estado. Em um país onde há registros de práticas que se utilizam de trabalho análogo ao de escravo, a ação do Estado teria de ser implacável. Além disso, há outras modalidades da ação pública a serem colocadas em prática: mecanismos de fomento às empresas que implementam sistemas coletivos de proteção, sistema de apoio à atuação sindical, diversas modalidades de educação, dentre outras. A ação pública efetiva é o maior estímulo ao desenvolvimento de práticas no seio das empresas, inclusive, reproduzindo o exemplo do que se passa nos próprios serviços públicos para a prevenção de acidentes envolvendo seus servidores. Resta muito a fazer, pois o que se observa é a inobservância da ação de medidas protetivas e ou da adoção de modalidades de organização 'saudáveis' para os próprios trabalhadores públicos.
* https://www.scielo.br/j/rbso/a/jhZhsnTzDJgDswGSWPyczJf/?lang=pt
Vanessa Farias - Sim, os acidentes do trabalho no Brasil constituem o principal agravo na saúde do trabalhador, com impactos negativos nas esferas econômica, social, previdenciária e jurídica. Eles afetam as políticas públicas e, principalmente, a qualidade de vida do trabalhador e sua família. O que fazer para mudar essa realidade é uma pergunta que norteia diversas buscas e investigações de distintas áreas, ações de trabalhadores de vários segmentos econômicos e suas representações sindicais. Temos uma vasta literatura produzida sobre o tema, de campos do conhecimento que refletem interesses tanto do capital quanto da força de trabalho – porque, sim, não há neutralidade no saber e na produção de conhecimento científico.
De início, precisamos sinalizar que há um conflito de interesses entre capital e trabalho nessa disjuntiva. Podemos, inclusive, perguntar: por que muitas empresas não atuam para mudar esse cenário, uma vez que são afetadas economicamente por esses agravos?
Longe de uma resposta definitiva para o tema, traremos algumas reflexões. Não é por acaso que, nas investigações de acidentes do trabalho (AT), o que prevalece ainda hoje é a utilização de ferramentas calcadas no positivismo, em teorias comportamentais e monocausais que buscam um culpado. Tem sido assim há décadas. Interessa nas investigações conduzidas pelas empresas apontar um culpado, em geral a própria vítima, numa busca pelo erro humano, pela responsabilização do indivíduo. As investigações se encerram aí, quando encontram um culpado, em vez de enfrentarem as causas mais profundas que levaram ao sinistro, para que se produza uma efetiva prevenção. Não é por falta de alternativas de métodos de investigação mais ampliadas. Ao contrário, temos formas e referenciais para isso, abordagens de cunho sócio-organizacionais que permitem investigar um acidente para encontrar os processos que fizeram com que acontecesse. Essas abordagens não são utilizadas porque interessa aos condicionantes da produção investigar os acidentes para encerrar o caso em um culpado. Assim, não é necessário enfrentar temas estruturais, que estão imersos na estratégia de reestruturação produtiva que objetiva manter altas taxas de extração de mais valor.
Em outras palavras, não é do interesse das empresas buscar as causas estruturais dos acidentes, como alguns que já apareceram em investigações mais ampliadas e profundas conduzidas por equipes externas as organizações, como por exemplo a terceirização do trabalho, a precarização do trabalho e a redução do número de trabalhadores, com aumento da produção. Isso porque tratar desses processos afeta diretamente o centro dos interesses do capital, que opta por mantê-los, em detrimento das condições de saúde e segurança para os trabalhadores.
Por outro lado, há um enfrentamento a essa postura há décadas. Abordagens contra hegemônicas, com referenciais sócio-organizacionais, foram desenvolvidas tanto em âmbito internacional como em nível nacional, como é o caso do MAPA (Modelo de Análise e Prevenção de Acidentes), que pode ser aplicado e permite ampliar a investigação para entender como e principalmente por que aconteceu o AT.
A mudança dessa realidade passa por um conflito de interesses (capital x trabalho). Os trabalhadores amoldam diversas formas de resistência aos processos destrutivos do trabalho, tanto nas resistências “moleculares”, no dia a dia, como em ações coletivas e organizadas. O desgaste gerado pelo trabalho aos operários, por exemplo, não se expressa só em acidentes e doenças. Há muitos outros sinais, como o livro de Berlinguer destacou. Sinais individuais e coletivos que às vezes aparecem, outros são reprimidos e às vezes são reconhecidos parcialmente por empresas e instituições, num palco permanente de disputas. Quero enfatizar isso porque há uma tendência – me refiro aos profissionais da nossa área – em focar em grandes eventos de acidentes e doenças, o que desloca o olhar dos processos destrutivos do cotidiano do trabalho, que por vezes encuba o desenrolar desses sinistros de grandes proporções. Esse foco leva a aprisionar a produção de conhecimento para prevenção em solucionar os casos – quando se chega a isso tem-se uma armadilha, porque, ao abandonar o centro do olhar para os processos que geram desgaste e sofrimento no trabalho no dia a dia, fica-se preso à lógica da reparação ao invés da prevenção, ainda que não se queira. Funciona, como diz um ditado, como um bode na sala, onde a questão central são os eventos de grandes proporções. Aqui, para todos os efeitos, quero enfatizar que, sim, devem ser tomados os grandes acidentes, mas não devemos, sob pena de apenas atingir reparações muito parciais aos trabalhadores, abandonar a centralidade dos processos destrutivos do cotidiano, para agir e auxiliar a resistência dos operários e para evitar que os acidentes e adoecimentos se repitam.
Há ainda uma lacuna importante na chamada vigilância em saúde do trabalhador. A Vigilância em Saúde do Trabalhador (Visat) é um dos componentes do Sistema Nacional de Vigilância em Saúde (SNVS), e tem por objetivo – vou reproduzir o que está dito em sua carta constitutiva – “ser conjunto de ações que visam à promoção da saúde, prevenção da morbimortalidade e redução de riscos e vulnerabilidades na população trabalhadora, e que devem ser realizadas de forma contínua e sistemática, ao longo do tempo, visando a detecção, conhecimento, pesquisa e análise dos fatores determinantes e condicionantes dos agravos à saúde relacionados aos processos e ambientes de trabalho, tendo em vista seus diferentes aspectos (tecnológico, social, organizacional e epidemiológico), de modo a fornecer subsídios para o planejamento, execução e avaliação de intervenções sobre esses aspectos, visando a eliminação ou controle.” Só que na prática a realidade é outra. Além dos gargalos que nosso sistema de saúde tem (falta de investimentos, para citar um deles), os órgãos públicos encontram enormes resistências das empresas. O acesso às informações é negado, o acesso aos ambientes e à realidade do trabalho é restrito, porque, mais uma vez, não é do interesse das empresas sequer mapear os AT que acontecem. Elas prezam por manter alta produtividade com as mais baixas taxas de ocorrência em relação à saúde. Sem falar nos desafios imensos que são concatenar as ações de VISAT com os trabalhadores e as instituições de pesquisa. São várias as lacunas, tema para uma longa conversa. Fiz essa consideração para sinalizar que são muitos os desafios para alterar essa realidade.
Para resumir, trouxe aqui algumas reflexões sobre o permanente conflito que há entre o capital e o trabalho no enfrentamento a esse cenário de mortes por acidente do trabalho. As investigações dos acidentes são, de forma prevalente, centradas na culpabilização do indivíduo. Na maioria das vezes os acidentes sequer são notificados, o que impede que se tenha um traçado real para a produção de políticas públicas. No âmbito dos profissionais da área, prevalece uma visão reducionista, em que muitos estão sobre a esteira da saúde ocupacional, com foco na reparação e não na prevenção, com uma visão extremamente normatizada, afastada do saber operário, voltada para adequação da força de trabalho à produtividade. É uma espécie de ciclo que se alimenta dentro desse conflito: os processos destrutivos do trabalho são ignorados, por vezes estimulados, e quando os AT acontecem, as investigações se encerram em um culpado, não acessam as causas profundas. Mesmo quando estas são acessadas, não se enfrentam as causas, porque não é do interesse do capital. As subnotificações dos AT são estimuladas, e as esferas públicas encontram resistência em atuar, até mesmo para uma simples notificação. Recentemente, estudei um caso na minha dissertação de mestrado que tratava exatamente de um AT em que foi possível ser feita uma boa investigação, que chegou aos processos que desenvolveram o acidente. Mas os temas que deveriam ser enfrentados não o foram por resistência da empresa, por serem estratégicos para o processo de reestruturação produtiva. Isso mesmo dentro de uma ação judicial no âmbito do Estado.
Para mudar essa realidade, há muitos desafios, e eles não são pequenos. Depende muito da situação dos trabalhadores e do seu movimento, da subversão dessa lógica de reparações, de uma ação concreta em busca de uma prevenção construída com o protagonismo do trabalhador. Existe muita literatura crítica sobre o tema. A quem possa interessar, destaco o livro de Odonne, recentemente republicado no Brasil, da medicina social latino-americana, o livro de Jaime Breilh, “Epidemiologia crítica”, e o livro “Saber operário: construção de conhecimento e a luta dos trabalhadores pela saúde”, de diversos autores.
2. O Brasil ocupa o 4º lugar no ranking mundial de acidentes de trabalho, embora seja o país que mais possui legislações referentes à segurança no trabalho em todos os âmbitos. Qual a razão dessa contradição?
José Marçal - A legislação tem papel simbólico fundamental, mas não é suficiente, por si só, para resolver todos os problemas. De qualquer forma, é preciso analisar o conteúdo da lei, assim como sua implementação. Podemos tomar como exemplo a existência de serviço como a CIPA, que no caso brasileiro está sob controle da empresa (é ela quem define o presidente) ou a dos SESMTs, cujos profissionais no Brasil são empregados da empresa, diferentemente de outros países. O que se observa na configuração existente no Brasil é que sua ação é controlada pelas empresas, muitas vezes, contrária à prevenção. Além disso, a construção tripartite serve muitas vezes para que os empregadores controlem o processo normativo, veja o caso da norma recém-publicada sobre coleta de resíduos urbanos na qual não foi proibido o uso de plataformas para transporte dos trabalhadores (responsável por inúmeros acidentes, inclusive fatais). Enfim, de que adianta ter leis se as empresas não cumprem; se não há agentes de Estado em número suficiente para inspecionar as condições de trabalho, se o teor da lei não foca nas questões principais?
Vanessa Farias - A quantidade de acidentes do trabalho em âmbito nacional forma um cenário alarmante. O Brasil ocupa a terceira posição no ranking mundial em mortes por acidentes do trabalho, atrás apenas de EUA e China, em números absolutos, conforme dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2023). Segundo a Previdência Social (2023), em 2022 foram 612,9 mil acidentes do trabalho notificados e 116 mil acidentes sem notificação, totalizando 728,9 mil casos registrados no país. No levantamento do Observatório Digital de Segurança e Saúde do Trabalho, constam, entre 2012 e 2021, 6,2 milhões de Comunicações de Acidentes do Trabalho (CAT), sendo que o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) assegurou 2,5 milhões de benefícios previdenciários acidentários, incluindo auxílios-doença, aposentadorias por invalidez, pensões por morte e auxílios-acidente.
A existência desse cenário, apesar do expressivo arcabouço legal brasileiro acerca da segurança do trabalho, revela o conflito que discorremos anteriormente. A normatização da segurança e o cumprimento de regras não garantem segurança e saúde para os trabalhadores. Em alguns casos a segurança excessivamente normatizada pode até contribuir para o desenvolvimento de AT, como demonstrou uma pesquisa que investigou um AT em uma refinaria de petróleo brasileira. Faço uma ressalva para fique claro que as normas têm sua importância, foram conquistadas e podem servir para coibir processos destrutivos ainda mais exacerbados. Mas o arcabouço legal é fruto, em sua maioria, de produções em comissões tripartites, negociadas, e não refletem, no que prescrevem, as variabilidades existentes nas atividades para desenvolvimento do trabalho.
No cotidiano, encontramos nas empresas uma série de documentos com cumprimentos normativos, certificados ISO, programas de gerenciamento de riscos, laudos técnicos ambientais. Em compensação, quando vamos a campo, nos locais de trabalho, deparamos com processos que impõem aos trabalhadores a convivência com agentes agressivos e perigos que não aparecem nesses documentos. Situações como essas refletem que a preocupação das empresas, é apenas, quando muito, seguir as regras, e não prevenir efetivamente os acidentes e adoecimentos.
Há ainda outras situações que qualquer norma de segurança é sumariamente ignorada, nas quais tem-se que lutar para ter uma norma cumprida, um adicional pago. A saúde está vendida e monetizada, e sequer os trabalhadores recebem pela venda. Cenários absurdos, mas é aí onde estamos parados, infelizmente.
3. Qual o papel dos(as) trabalhadores(as) e empregadores na prevenção a acidentes de trabalhos?
José Marçal - Como são os prepostos dos empregadores que desenham os sistemas de produção, definem o que deve ser feito, são eles e seus empregadores que têm o poder de influenciar a adoção de medidas de proteção, em especial de formas de organização protetoras. Por sua experiência, os trabalhadores teriam muito a contribuir desde que as empresas/instituições criassem condições para isso, estando abertas a escutar e implementar sugestões feitas pelos trabalhadores e trabalhadoras. Atualmente, em alguns países, existem leis que estimulam a participação dos trabalhadores e formas democráticas de expressão. O que não acontece ainda no Brasil. É mais fácil responsabilizar os próprios trabalhadores pelos acidentes que sofrem do que correr o risco de escutá-los e valorizar sua contribuição.
Vanessa Farias - Para uma busca de proteção da saúde dos trabalhadores, o que temos acumulado na área da saúde do trabalhador é que se faz necessária a participação direta deles na produção e na construção de processos protetivos à sua saúde. Quem mais conhece o processo de trabalho é quem o faz. Essa participação precisa ser efetiva, direta, e não considerar os trabalhadores apenas como ouvintes de pesquisa pública ou de opinião de especialistas.
Essa premissa do campo da Saúde do Trabalhador- ST, recebemos influência da experiência do Movimento Operário Italiano (MOI) na luta pela saúde. Ainda no Brasil nos anos 1980 houve a construção do DIESAT, nos programas de saúde do trabalhador etc. Em paralelo à institucionalização da ST no SUS, como nos explicam os autores de experiências e ensaios mais recentes, a partir dos anos 1990, a participação dos trabalhadores nos centros de referência em saúde do trabalhador (CEREST) e na Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde dos Trabalhadores (RENAST) foram baixas e se reduziram. As participações dos trabalhadores nesses programas, quando acontecem, têm sido incorporadas nos limites do controle social, contidas pela ênfase na gestão, e geralmente são as assimiláveis pela dinâmica do Estado (Eberhardt, 2023; Jackson Filho, 2018; Stotz e Pina, 2017; Stotz, 2006).
Acho importante falar que os trabalhadores enfrentam uma prolongada defensiva frente ao capital em nível nacional e internacional. Essa situação coloca obstáculos ainda maiores para organização dos trabalhadores na luta pela sua saúde e no enfrentamento dos acidentes de trabalho para evitá-los. Os trabalhadores já resistem de diversas formas a esses processos no dia a dia, adaptando o trabalho. Não são poucos os desafios, e penso que a participação direta dos trabalhadores nesse desfecho é decisiva, deve ser protagonizada por eles, com seus aliados. Sem a pretensão de fórmulas acabadas, chamamos a atenção para refletirmos que essa participação protagonista não seja distorcida, fazendo dos trabalhadores meros prestadores de informações para outros projetarem. Ou que se reduza a ideias cooptadas por empresas que expropriam conhecimento dos trabalhadores e tratam como fator produtivo.
Dentro do nosso próprio campo da saúde do trabalhador temos que estar atentos para não nos engendrarmos na lógica de produzir conhecimento apartados dos trabalhadores. Tem uma experiencia que vou compartilhar cujos aprendizado e reflexão foram para mim importantes. Fui convidada a participar de um curso para CIPA eleita dos trabalhadores do segmento da indústria do vidro, já há muitos anos. Chegando lá, um colega fez uma excelente explanação, dialogando com os operários sobre a importância da prevenção em ação. Me lembro que ele desenvolveu uma boa discussão sobre a limitação de centrar a segurança em apenas uso de EPI – equipamentos de proteção individual etc. Durante a sua abordagem e discussões, surgiu a problematização do trabalho dos artesãos do vidro. Artesãos, pelo que apreendi à época, eram trabalhadores que faziam artefatos de vidro de forma manual, com equipamentos específicos. Eles amoldam o vidro manualmente a temperaturas em cerca de 800 ºC. São profissionais geralmente com anos de experiência. Abriu-se uma discussão na qual alguns técnicos presentes destacavam a necessidade de pensar a proteção, alertavam que eles corriam perigo de acidentes etc. No plenário, levantaram dois artesãos e começaram a falar: Nosso trabalho é arte! Vocês querem acabar com nossa arte? Substituir por equipamentos, máquinas? Nosso trabalho é arte, e é assim que nós fazemos. Foi um impacto que rendeu algumas tentativas de diálogos, os quais não foram muito além. Isso me acompanha até hoje. O processo de trabalho tem sua dualidade. Ao mesmo tempo que pode nos realizar, nos constituir como indivíduos sociais, pode nos adoecer e matar. Os artesãos implicados na discussão pareciam ter recebido a ideia de sugerir medidas de segurança como algo agressivo e ameaçador, e hoje, penso que tem significado. Um desafio de como projetar a mitigação dos perigos impostos nessa arte deveriam partir deles, da sua prática, do seu reconhecimento refinado, do seu savoir-faire. É claro, a participação dos técnicos, pesquisadores e especialistas é importante, traz alguns conhecimentos aprendidos que podem se combinar com o saber sobre o processo de trabalho, e fazem diferença. O problema é de onde partimos e para onde vamos. Assim é com a prevenção a AT. Por mais genial que possa ser um projeto de segurança, apartado do saber operário, da luta coletiva pela saúde, tende a ser ineficaz. Tende a ficar pairado no vendaval dos acontecimentos.
Quanto ao papel das empresas, seria no mínimo uma ingenuidade ou fantasia idealista concluir que darão serenamente espaço para essa construção, dados os interesses que têm em extrair a maior taxa de exploração, e isso implica um desgaste da saúde e a admissão dos riscos de acidentes. Concessões podem ser arrancadas, mas elas estão relacionadas à capacidade histórica e conjuntural da organização coletiva dos trabalhadores nessa direção. Ao final, o ferramental acumulado até aqui (modelos alternativos de investigação de acidentes, análises críticas do trabalho etc.) só se torna efetivo a partir dessa premissa. Gosto sempre de lembrar uma expressão usada por Pina e Stoz, que diz em síntese: Saúde é luta!
4. E quanto ao serviço público? Qual a responsabilidade da Administração na prevenção a acidentes?
José Marçal - Se você me permite, eu diria que a pergunta é outra, isto é "Qual a responsabilidade da Administração na produção e prevenção a acidentes?” Veja é a administração quem define o que os servidores devem fazer e suas condições de trabalho. A produção de agravos atualmente parece estar diretamente associada a métodos de gestão, oriundos do setor privado, que retira o sentido do trabalho público e o intensifica sem assegurar os meios para sua realização. Formas de controle excessivas, patrimonialismos em diversos órgãos e gerencialismo crescente (o papel da gestão torna-se mais importante do que os serviços técnicos) - todos são ingredientes do que se denomina atualmente de assédio institucional (Cardoso Jr et al., 2022)** - mostra que o problema dos serviços públicos não são os servidores, ao contrário do que visaria a PEC da Reforma Administrativa. Reforma que pretende atuar sobre os processos, as relações de trabalho e sobre os trabalhadores sem mexer com a organização e formas de gestão. O maior problema dos serviços públicos e determinante da saúde dos servidores é o patrimonialismo vigente em inúmeras instituições. Assim, em resposta à segunda parte da questão que reformulei, acho que a Administração não tem poder de agir para enfrentar o patrimonialismo. Poderia, no entanto, demonstrar preocupação com a saúde dos servidores, pois os indicadores são alarmantes, mas parece ser mais fácil continuar a agir, como no caso do setor privado, acreditando que o problema são os servidores, não suas condições de trabalho.
**https://ppgd.ufba.br/sites/ppgd.ufba.br/files/afipea_livro_assedio_pdf.pdf
Vanessa Farias - O que tenho visto no serviço público nos últimos anos, com os servidores com quem temos trabalhado, é que as instituições reproduzem – guardadas as devidas proporções – a relação que os empregadores do setor privado têm com seus empregados. A saúde dos funcionários está relegada a última preocupação, quando existe. As condições de trabalho, nos casos em que tenho contato, se revelam precárias, e sequer os levantamentos que as normas exigem são cumpridos. O que vejo é uma preocupação dos gestores em cumprir orientações normativas para restringir os processos de monetização da saúde – que já é um retrocesso em si. Então, o olhar é todo voltado para justificar os cortes ou não pagamento de adicionais de insalubridade, com contorcionismos mirabolantes – já vi justificativa para que adicionais de insalubridade não fossem pagos porque o servidor não fica mais da metade de sua jornada de trabalho em contato direto com o Benzeno! Não basta manipular o agente cancerígeno em seu trabalho... Sob o jargão do saber normativo, apresentam tranquilamente justificativas dessa natureza, enquanto os servidores adoecem paulatinamente em seu trabalho. Em muitas realidades, encontrei laboratórios e ambientes que facilmente poderiam ser adequados para mitigar as agressões. Mas essa não parece ser a preocupação prevalente.
A administração pública pode mais, e pode agir com maior autonomia, dado que a natureza das relações de trabalho não é a mesma de um processo produtivo. De qualquer forma, nessa reprodução das relações no mundo do trabalho do serviço público também há uma disputa. Os interesses dos servidores em sua saúde (ainda que na mínima monetização dela – que é onde estamos) não estão ao encontro dos interesses/metas dos gestores. Mais uma vez, vamos observar um conflito entre capital e trabalho reproduzido nessas relações, e a correlação de forças existente entre as demandas dos trabalhadores e os gestores que vão definir as mudanças em direção à construção de processos protetivos da saúde.
A administração pública pode se valer do já produzido em termos de saúde e segurança para repensar e reprojetar sua intervenção. O processo saúde-doença pode ser analisado para além dos limites normativos, com a participação direta dos servidores nesses processos. Entender o trabalho a partir de quem o faz pode transformar em direção à prevenção. As formas podem assumir diversos contornos. Não temos uma fórmula acabada, porque cada caso tem sua particularidade e sua singularidade, que precisam ser consideradas. Ferramentas com amparo no referencial da saúde do trabalhador não faltam para auxiliar. O que é essencial é uma decisão nessa direção, e a história tem demonstrado que essas iniciativas não partem de mentes iluminadas de gestores – ainda que estas possam existir –, mas dos servidores mobilizados e decididos a enfrentar sua condição de forma coletiva.
5. Qual o papel dos sindicatos na proteção e acompanhamento aos(às) trabalhadores(as)?
José Marçal - Os sindicatos poderiam ter papel mais atuante na prevenção de acidentes. Mas, para tal, precisariam focar suas ações no campo da prevenção, negociando melhores condições de trabalho e sistemas mais seguros. Todavia, o que se observa, é que a questão salarial e a busca pela reparação de danos ainda prevalecem, servindo até como impedimento à prevenção. Ainda, há muito a fazer no campo da prevenção de acidentes.
Vanessa Farias - O papel dos sindicatos é fundamental. É o espaço e lugar onde os trabalhadores podem se amparar e organizar a luta pela saúde e prevenção aos AT. Essa situação que você descreveu no início da entrevista só não assume contornos ainda mais dramáticos graças à resistência dos trabalhadores, e os sindicatos são importantes, quando não decisivos nesse caminho. A situação defensiva da força de trabalho, o modelo sindical brasileiro atrelado ao Estado com resquícios ainda da era Vargas, a fragmentação da luta pela saúde da luta econômica são processos na história e no presente que dificultam avanços expressivos em direção a uma mudança dessa realidade de centenas de vidas ceifadas dos trabalhadores pela exploração de seu próprio trabalho. Por outro lado, como tudo está em movimento, a situação defensiva dos trabalhadores em relação ao capital e a organização dos trabalhadores também estão, e graças a essa força de tudo produzir e reproduzir repousa uma perspectiva otimista de uma potencial mudança dessa situação. Quanto aos profissionais da nossa área, cabe agir e perseguir atuar em favor da subversão dessa realidade. É importante sempre nos questionarmos os porquês das coisas, não nos contentarmos com apenas as aparências dos acontecimentos, e nos dedicarmos para mudar efetivamente, em bases as premissas que conversamos, sem aceitarmos substituir os protagonistas – os trabalhadores. Mudar com esse sentido, porque há quem mude o tempo todo para que as coisas continuem exatame